Virginia Woolf
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As Horas e as Eras, o Tempo em Virginia Woolf

As Horas e as Eras, o Tempo em Virginia Woolf

written by Emanuel Souza

25 May 202410 EDITIONS
2 TEZ

As Horas e as Eras, o Tempo em Virginia Woolf

Tomando o estilo narrativo de Virginia Woolf como ponto de partida, propomos uma reflexão sobre o conceito de tempo. A forma literária com que Virginia Woolf aborda o tempo nos ajuda a refletir sobre nossa própria experiência subjetiva.

Introdução

Tempo, uma palavra de multiplicidade semântica em sua aparente simplicidade. Uma linha reta do passado em direção ao futuro, as memórias que nos constituem, as histórias passadas, os anseios futuros, podemos de diferentes formas abordar o conceito de tempo. Levando em consideração a literatura, a forma como um autor aborda o tempo, tanto da narrativa quanto dos personagens, é um dos pontos fundamentais para sustentar o enredo.

Entre a forma clássica linear e técnicas experimentais, autores irão criar formas literárias para expressar a passagem do tempo e a temporalidade, entre aqueles que com maestria dominaram a narrativa do tempo, está Virginia Woolf.

Neste ensaio, destacamos a forma como a escritora transmite ao leitor a temporalidade da história, tanto através da narração como dos personagens em suas tramas. O tempo linear é dobrado, como uma folha de papel múltiplas vezes dobrada, criando uma sobreposição do presente, tornando vivo o passado e o futuro. Aproximando a narrativa literária da experiência subjetiva, através de suas palavras Virginia Woolf nos conecta com a nossa própria relação com o tempo.

O Fluxo Narrativo

Virginia Woolf ocupa lugar de destaque no panteão dos escritores do século XX. Seu estilo único usa a narrativa lírica para construir a história através da experiência dos próprios protagonistas. Através do fluxo de consciência encontra a psicologia íntima dos personagens, misturando corrente de ideais com impressões exteriores, em uma sequência contínua que rompe a separação entre interior e exterior. As descrições de ambiente são pontuais, na maior parte das vezes o leitor acessa a paisagem através do ponto de vista do personagem. Mais do que o sol se pondo no horizonte, a autora nos mostra o que se passa em alguém experienciando a cena.

Essa relação narrativa com os personagens fica clara em "As Ondas ", o sexto romance da autora, escrito em 1931. O texto, praticamente em sua totalidade, é escrito na forma de monólogos internos. O estilo descritivo poético é marcante, tornando viva a impressão do que se passa ao redor. Por exemplo, quando os personagens estão deitados em um gramado próximo a praia, o barulho das ondas e a sensação na pele da brisa marinha são sensações utilizadas para construir a cena audiovisual acontecendo longe dos olhos do leitor.

O encadeamento narrativo é construído em um quebra-cabeça onde cada peça possui uma temporalidade própria, ao mesmo tempo, formam o todo presente que é transmitido para o leitor. Lembranças e percepções se misturam, criando um novo tempo, que apenas por um momento é presente. Uma onda no meio do oceano nasce, tão mais profunda quanto mais da praia distante, movimento ininterrupto ainda que não percebido, apenas conjecturado quando nas areias a onda arrebenta, seu barulho cruzando a orla, encontrando ouvidos atentos que imaginam todo o trajeto pela onda feito. Da mesma forma que o som do mar é uma presença distante e constante, as memórias da juventude são um ritornelo afetivo. O primeiro beijo, a primeira decepção amorosa, as relações familiares, o amor platônico sempre lembrado e nunca concretizado. Cada personagem se desenvolve em torno de cenas e desejos que são o centro de uma espiral em direção ao futuro, que é sempre agora.

Todos os Tempos de Uma Vida

Certamente o estilo de Virginia Woolf ressalta a multiplicidade do que chamamos de tempo, conseguindo através de um fluxo de ideias e cenas criar um enredo. A construção literária funciona como uma lente de aumento sobre o tecido do real, permitindo uma visão aproximada da constituição subjetiva e social.

Sempre há uma história que antecede a história, e isto é tão verdadeiro na literatura quanto na vida. O recém nascido já carrega a história da família, o peso do nome, as relações geográficas e sociais. Todas as linhas que tecem o corpo, criando uma experiência que é ao mesmo tempo coletiva e singular para cada indivíduo. Um exemplo interessante é o romance “Orlando: Uma Biografia". Escrito em um estilo que satiriza a linguagem usada por historiadores e biógrafos, o livro traz uma técnica diferente do fluxo de consciência normalmente utilizado pela autora. Entretanto, a forma descritiva com a qual o narrador narra os fatos, retrata a vida de Orlando sobreposta de acontecimentos vividos pelo protagonista, ao mesmo tempo, histórias paralelas obtidas de outras fontes, testemunhos ou documentos.

Orlando é um jovem inglês, descendente de uma família nobre que se muda para Londres a pedido da Rainha. A descrição da vida do jovem Orlando segue o tom biográfico, situando o estilo de vida do protagonista com o sistema moral e costumes da época. Os anos passam, Orlando adulto e amorosamente decepcionado se muda para a Turquia, lá exerce um importante cargo na embaixada. É neste ponto que o texto muda, e com maestria Virginia Woolf introduz o fluxo narrativo no estilo biográfico. Certa noite Orlando dorme e passa dias dormindo, quando acorda, é uma mulher. A mudança de Orlando traz uma mudança na percepção do tempo.

Ao acordar mulher, Orlando afirma sua própria ética em relação à moralidade vigente. Somando outro fato, Orlando parece dotado de imortalidade, ou pelo menos, longevidade suficiente para viver eras, percebendo as mudanças sociais. Diante da visão do futuro Orlando afirma sua individualidade, da mesma forma que o fazia na tenra infância quando guiado pela criatividade infantil criava brincadeiras. A criança está presente no adulto, como memória viva e corpo presente.

Uma vida é composta pelas sobreposições do tempo, o agora é fugidio, ao mesmo tempo, é a concretização constante da multiplicidade que se encaixa para formar aquilo que experienciamos como “eu”.

As Horas e as Eras

Envelhecer é o processo constante de assimilação do presente. Os passos de chronos e a sensação de que o tempo passa rápido. É interessante que o romance “Mrs. Dalloway” inicialmente foi intitulado de “As horas”, já que toda a ação do livro acontece durante algumas horas durante o dia da protagonista, ainda que a narrativa transite entre o passado e o futuro, à medida que memórias e pensamentos entram no fluxo narrativo.

Virginia Woolf parece sempre nos lembrar da fúria do tempo, sempre ameaçador e à espreita, sempre muito, carregado da força do passado e da incerteza do futuro. Viver é habitar o presente, o instante vulnerável onde a vida acontece.

No romance “Rumo ao Farol”, publicado em 1927, a trama se passa em dois dias separados por 10 anos. O livro começa com os personagens de uma família burguesa e seus amigos, em uma tarde às vésperas de uma excursão para o farol. O farol fica em uma pequena ilha que pode ser vista das janelas da casa, o trajeto apesar de não ser muito longo é perigoso se o mar não estiver nas condições certas, devido ao mau tempo a excursão é cancelada. Dez anos depois alguns personagens retornam a antiga casa, para desta vez finalizar a empreitada até o farol. Dez anos passados, a casa já não é a mesma, depois de deteriorada e reformada, os personagens já não são os mesmo, alguns morreram, os vivos na memória carregam o peso dos mortos. Uma cena, a excursão para o farol partiu, Lily Briscoe ficou, decidida a pintar prepara o cavalete com a pintura iniciada a dez anos. Agora, olha a pintura inacabada, olha o barco cruzando as águas, uma pequena mancha cortando o mar, pensa nos tripulantes, pensa em mudar a cena do quadro, pensa na vida, lembra do passado, lembra de maneira tão intensa que a amada figura falecida se faz presente. A morte física representa um fim, ao mesmo tempo em que a vida simbólica continua, os mortos permanecem vivos na sobreposição temporal que forma a subjetividade. O presente, o passado, o imaginado, dez anos diluídos nos segundos, tudo emaranhado na experiência viva do agora.

A Vida e a Literatura

Como afirmado anteriormente, a literatura de Virginia Woolf revela o tecido da realidade, mostra os mecanismos da máquina cotidiana. A força da narrativa está na aproximação com a constituição da experiência do pensamento, existir é o constante presente, tão infinito quanto efêmero.

A vivência rotineira tende a ser padronizada pelas pressões sociais e as necessidades do desejo. Na maior parte do tempo deixando em modo inconsciente aquilo que escapa a sequência algorítmica do cotidiano. A literatura permite aos olhos contemplar detalhes esquecidos, tornando possível, como bem coloca o poeta William Blake:

Ver o Mundo em um Grão de Areia

E o Céu em uma Flor Selvagem

Segurar o Infinito na palma da mão

E a Eternidade em uma hora

O tempo linear, do passado em direção ao futuro, é uma ficção discursiva, usada para organizar a experiência e permitir o compartilhamento. O tempo da existência é o presente, o único momento onde algo pode ser feito, onde o passado é atualizado e o futuro vivido.

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