O X da Questão
written by Emanuel Souza
Introdução
Dia primeiro de setembro de 2024, a plataforma X permanece fora do ar no Brasil. Com quase 22 milhões de usuários no país, a questão é de grandes proporções. A mídia tem noticiado momento a momento a batalha entre o bilionário Elon Musk e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. A saída do ar da plataforma é mediante determinação judicial, enquanto Musk rebate como uma vítima em defesa da “liberdade de expressão”. Neste embate quem tem razão? Vamos analisar o que está acontecendo.
Panorama Histórico
Um pouco de contexto, nas últimas décadas as tecnologias de informação e comunicação tornaram-se onipresentes na vida cotidiana. Nos aspectos mais simples ou mais complexos da rotina encontramos a presença da tecnologia. Hoje a maior parte dos indivíduos é dono de um smartphone. Este aspecto tecnológico tornou os telefones celulares uma parte integrante da constituição subjetiva e social. Transações financeiras, interações sociais, cuidados com a saúde, tudo em alguma instância está relacionado com os aparelhos pessoais. Se alguns anos atrás os dispositivos podiam ser considerados bens de luxo, hoje mesmo as camadas mais pobres da população possuem smartphones. Sendo assim, a ubiquidade destes aparelhos deve ser levada em consideração em qualquer análise sociológica.
Levando em conta a dimensão política, os smartphones são de importância central na afirmação de estados democráticos. Vamos fazer um exercício regressivo e voltar uma década no passado. Em 2010 uma onda de revoluções teve início no oriente médio e no norte da África. Lutando por direitos civis e liberdade, diferentes nações buscaram unir a voz contra estados autoritários.
Estas revoluções se espalharam globalmente, assumindo diferentes facetas em diferentes países, um ponto em comum, o poder do ciberativismo como força central para lutar contra a repressão e a censura. Sem dúvida a internet foi uma peça fundamental na luta pela liberdade, governos autoritários tentaram impor formas de censura, o que foi em vão. O poder coletiva fortalecido pelas redes sociais tornou audíveis vozes até então abafadas. Neste contexto, a bandeira da liberdade de expressão foi condição de possibilidade para o empoderamento coletivo contra regimes autoritários.
A forma como a internet e redes sociais são utilizadas é própria a um contexto específico. Os anos passaram e as consequências das revoltas dos anos 10 ainda são sentidas, sejam elas positivas ou negativas.
Com a contínua evolução tecnológica e a massificação das redes sociais a relação entre governos e internet foi modulada. Neste sentido podemos destacar dois aspectos, em primeiro lugar a regulamentação e em segundo lugar o uso da internet para fins eleitorais.
A regulamentação é necessária tanto para garantir as liberdade individuais quanto para proteger os cidadãos de eventuais abusos, como por exemplo uso de dados pessoais sem permissão. Regulamentações digitais têm avançado em todo o mundo, no Brasil, o marco civil da internet promulgado em 2014 e a base legal para pensar os direitos e deveres dentro das redes digitais. A regulamentação visa boas práticas nos meios digitais, levando em consideração que as planícies virtuais estão submetidas às mesmas consequências jurídicas e legais presentes no mundo físico real. Em uso individuais ou institucionais, a regulamentação é para todos.
Tendo em vista o uso nacional da internet, é possível entender as possibilidades de uso político. Quando se trata de eleições democráticas, as redes têm ganhado cada vez mais força como importante ferramenta eleitoral. No Brasil e no mundo a internet pode ser a diferença entre a eleição ou não de um candidato, o que tem criado um mercado de propaganda e notícias que movimentam grande quantidade de dinheiro. A relação entre internet e eleições ainda habita um plano legal marcado por brechas e obscuridades, uma linha tênue entre discursos criminosos e a liberdade de expressão. Este embate é fundamental para entender a atual situação do X no Brasil.
O papel da internet nas últimas eleições brasileiras
Em 2018 o candidato Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil em uma campanha sem precedentes. Até 2017, Bolsonaro era um deputado dentro de um nicho restrito, vez ou outra viralizando como meme por declarações polêmicas. Aproveitando a força viral de rápida transmissão, a campanha de Bolsonaro girou em torno do poder do meme. Ganhou força “o mito”, sem preocupação com uma agenda política concreta a campanha de Bolsonaro conseguiu cooptar o imaginário social em torno de uma figura fictícia. Não foi eleito o deputado Jair Bolsonaro, foi eleito o “Capitão”, o meme personificado.
Utilizando as redes sociais, o discurso político circulou dentro das bolhas digitais, construindo uma figura mitológica sem qualquer relação com a realidade histórico política do país. O meme conseguiu extrair o sentimento catártico de uma nação insatisfeita, fazendo com que de forma viral notícias se espalhassem através das redes sociais. A força da internet também tornou a campanha de financiamento coletivo para a campanha um sucesso, foi o maior valor levantado por um candidato. A eleição de Bolsonaro foi um marco histórico, sinal de uma nova forma de campanha eleitoral focada em bolhas digitais. O que trouxe a questão da legalidade das ferramentas utilizadas.
Tais questões culminaram na Comissão Parlamentar de Inquérito instituída em 2019, visando investigar disparos em massa de informações falsas nas eleições de 2018 e o uso das redes sociais para ataques orquestrados contra agentes públicos e instituições.
A disseminação de notícias falsas e discursos de ódio é um ponto nevrálgico da política contemporânea. No Brasil e no mundo tem sido pensado formas de regulamentar os meios digitais, ao mesmo tempo mantendo e assegurando a liberdade.
No momento atual, setembro de 2024, o Brasil está às vésperas de novas eleições. No próximo mês serão escolhidos os representantes municipais em todo o país. É neste terreno onde o embate entre Elon Musk e o governo Braisleiro acontece.
Musk x Moraes, entre a liberdade e a manipulação
Ao traçar o histórico da relação entre internet e política nos aproximamos dos detalhes da querela envolvendo o X e o governo Brasileiro. O embate entre a rede social e o governo tem início do escalonamento em 2023.
Em 2022, Bolsonaro perdeu a eleição para presidente. Bolsonaristas receberam com grande insatisfação a notícia, o que iniciou um movimento de contestação do pleito eleitoral. Utilizando argumentos sem fundamento, os bolsonaristas desejavam a anulação da eleição. Vendo que por meios legais esta não era uma possibilidade, decidiram partir para o ataque direto em uma tentativa de golpe de estado.
No dia 8 de janeiro de 2023, um grupo a favor de Jair Bolsonaro tentou derrubar o governo recém eleito. Nesta tentativa de golpe marcharam pela capital brasileira e invadiram prédios públicos, como a Câmara dos Deputados e o Palácio Presidencial. Tal ato foi marcado por vandalismo e violência. Sem contar com apoio político, o golpe foi fracassado e organizadores e participantes passaram a responder às consequências legais dos atos antidemocráticos.
Neste momento, Alexandre de Moraes, juiz da Suprema Corte, determinou que a rede social X entregasse os nomes e endereços de IP dos responsáveis pela organização da tentativa de golpe. De acordo com as leis Brasileiras, o X deveria entregar as informações solicitadas, caso contrário, estaria obstruindo a lei.
Elon Musk se recusou a cumprir o pedido da suprema corte brasileira, alegando que se tratava de um atentado à liberdade de expressão. Em resposta, Alexandre de Moraes determinou uma multa e intimou o representante legal da empresa a comparecer na corte.
Usando argumentos de que a decisão era “anti democracy”e “anti free speech”, Musk determinou o fechamentos dos escritórios da rede no Brasil. Frente ao que considera “exigências de censura” decidiu demitir todos os funcionários, deixando o Brasil sem qualquer representação legal.
A decisão de fechar o escritório no país e deixar a plataforma sem um representante legal em território nacional, ferem diretamente a lei brasileira que exige que qualquer empresa estrangeira tenha um representante legal no país. Segundo o artigo 1.138 da lei:
"A sociedade estrangeira autorizada a funcionar é obrigada a ter, permanentemente, representante no Brasil, com poderes para resolver quaisquer questões e receber citação judicial pela sociedade".
Elon Musk respondeu com ironias e memes, usando o X para atacar o governo, mormente, o ministro Alexandre de Moraes, sendo frequentemente chamado de ditador.
Precedentes
É importante deixar claro que a decisão do Supremo Tribunal Federal tem precedentes. Em 2023 Alexandre de Moraes determinou que o aplicativo de mensagens Telegram indicasse um representante legal no país. A medida foi cumprida, na ocasião o Telegram indicou um escritório de advocacia brasileiro como representante legal da empresa.
Outra situação, em 2021 a conta de Donald Trump (inicialmente no twitter, em seguida em outras redes sociais) foi suspensa devido a postagens incentivando a invasão do Congresso dos EUA. Na ocasião, a conta de Trump foi bloqueada, conteúdos retirados do ar e algumas postagens permaneceram on-line mas sem a possibilidade de curtidas e comentários.
Ainda que a defesa das liberdades individuais seja uma bandeira de suma importância, existe uma linha onde utilizando o pretexto da liberdade de expressão crimes são cometidos. Na época do bloqueio da conta de Trump, houve forte pressão de diferentes parcelas da sociedade cobrando medidas mais severas.
Tomando estes dois casos como precedentes para a atual situação do X no Brasil, começamos a entender que os ataques às instituições jurídicas brasileiras possuem motivação maior do que a apresentada sobre o signo da liberdade.
Considerações Finais
Em nossa sociedade global tecnológica, a internet exerce grande importância tanto no âmbito individual quanto social. Tanto instituições estatais quanto privadas dependem em maior ou menor medida da conexão digital. Neste contexto, as redes sociais são um dos pilares da comunicação e troca de informação.
Tendo em vista o caráter global da atual era, estados nacionais têm procurado formas de regulamentar o mundo digital. Na aparência não existem fronteiras dentro da internet, entretanto, dentro de cada país haverão legislações específicas visando a manutenção da soberania nacional e a segurança dos cidadãos. Em alguns casos a regulamentação pode ser transformada em linhas duras de repressão e censura, neste sentido tornado o ciberativismo uma importante arma de luta.
Entretanto, cada caso deve ser analisado individualmente, esmiuçando as linhas e interesses que o compõem. No atual embate entre Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes estão em jogo interesses financeiros camuflados em discursos políticos. Musk faz um jogo de narrativas, tentando manipular a realidade a seu favor. Descumpre a legislação, dizendo ser vítima de perseguição e excessos.
A decisão do ministro Moraes é totalmente baseada no Código Civil brasileiro, determinando que empresas estrangeiras tenham uma sede e um representante legal dentro do país. O discurso vitimista deturpa a realidade, colocando em questão a liberdade individual quando o fato é uma empresa internacional comentando crimes em solo brasileiro.
Musk está diretamente interessado nos lucros oriundos das campanhas eleitorais brasileiras. Diz estar preocupado com a liberdade de expressão enquanto discursos de cunho racista e notícias falsas se espalham pela rede. Utiliza o mito de uma liberdade irrestrita, onde a opinião pessoal está acima dos fatos.
Não nos deixemos enganar, a liberdade de expressão é de suma importância para uma sociedade democrática igualitária, entretanto, não é isto que está em jogo aqui. Com palavras de ordem, Musk consegue apoio através da desinformação, sem qualquer preocupação com grupos e indivíduos que possam ser lesados por práticas que em última instância são criminosas.
Enquanto 20 milhões de brasileiros são prejudicados pelo bloqueio da plataforma, a culpa é unicamente de Elon Musk que se recusa a apontar um representante legal dentro do Brasil. Sem a ilusão de uma batalha maniqueísta entre bem e mal, existem leis que devem ser seguidas por todos, Musk não está acima da lei e o Brasil não é uma colônia digital.