O Peso do Desejo, Paralelos Moleculares em Anna Kariênina de Liev Tolstói
written by Emanuel Souza
Introdução
Escrito entre 1873 e 1877, Anna Kariênina é sem dúvida um dos romances mais populares da história da literatura. Tolstoi apresenta com rico realismo os dramas da alta sociedade russa, exibindo personagens construídos sem maniqueismo, expostos de maneira completa com seus vícios e virtudes. Toda a narrativa desliza por um jogo de luz e sombra, onde a iluminação revela a totalidade dos acontecimentos à medida que a fonte luminosa se desloca, cada ângulo iluminado temporariamente revela detalhes, nunca escondidos, apenas nas sombras ocultos.
A construção narrativa aprofunda a psique humana ao mesmo tempo que o desenrolar da trama é coletivo e social. O realismo literário é apresentado tanto nas sutilezas da construção subjetiva quanto nas instituições políticas e morais presentes nos itinerários cotidianos. Neste sentido, nos aproximamos dos conceitos de molar e molecular, na forma como apresentados por Deleuze e Guattari no capítulo Micropolítica e Segmentaridade. Não há uma diferença absoluta entre o social e o individual, o indivíduo é produto das codificações significantes coletivas. A real diferença é entre um campo de códigos e representações molares e um campo de desejos moleculares. São dois pólos em relação dinâmica, um macro-molar e um micro-molecular. É importante salientar que esses polos não se diferenciam por tamanho ou duração, nada de um grande e um pequeno, o que está em jogo são diferentes sistemas de codificação e referência.
Transpondo estes conceitos para a literatura, especificamente no romance Anna Kariênina, podemos ampliar o espectro luminoso, usando o jogo de luz e sombra para revelar paralelos que nos permitem um diagnóstico detalhado da sociedade contemporânea a Tolstói.
Neste ensaio pretendemos utilizar conceitos filosóficos para expor na arquitetura do texto as relações sociais e individuais dentro da paisagem político-social da época, desta forma entender o realismo literário como um indicador preciso de uma sociedade em mudança, possibilitando uma reflexão sobre nossa sociedade contemporânea.
Pares e paralelos
O romance Anna Kariênina começou a ser publicado entre 1875 e 1877 na forma de capítulos nas edições da revista O Mensageiro Russo, entretanto a publicação foi interrompida antes do final. Ainda em 1877 o autor compilou os capítulos com o final, levando a publicação do romance completo. A forma como o texto é construído revela as minúcias do tecido social através do cotidiano dos personagens. A genialidade do autor cria uma estrutura narrativa única, o próprio Tolstoi escreve em uma carta sobre a arquitetura do romance “Suas arcadas estão unidas de tal modo que não se percebe onde está a pedra angular. Para isso me empenhei ao máximo. A coesão da estrutura não tem por base a trama nem as relações (o conhecimento) entre os personagens, mas sim uma coesão interna.” Tolstoi nos mostra que mesmo os protagonistas são coadjuvantes frente as linhas que sustentam a trama.
As pressões e pretensões sociais, as relações de poder e subserviência, as regras morais impostas e os pequenos imoralismos socialmente aceitos, a ritualística do poder, o funcionalismo ocioso e a dureza do trabalho, são alicerces da coesão interna que torna os personagens tão humanos e a narrativa tão densa e real. Uma arquitetura invisível que leva o leitor a entender cada personagem por diferentes ângulos, um jogo de luz e sombra sem segredos, a vida e a sociedade expostas desde as camadas nuas até a pomposa vestimenta moral.
Nesta arquitetura narrativa, pares e paralelismos são importantes pilares. No centro do livro está o par Anna Kariênina e Konstantin Liev. Histórias que ocorrem paralelamente, em determinados momentos se afastando ou encontrando. Este par principal se desdobra em outros pares, destacadamente, a cidade e o campo. Esta conexão é importante para entender a profundidade da obra, de um lado a opulência ociosa das capitais (São Petersburgo e Moscou, outro importante par) de outro lado a dureza da vida rural. Os paralelos fazem emergir as linhas molares e moleculares, deixando claro que em cada polo estão presentes diferentes segmentos onde lugares e indivíduos são codificados através de signos sociais. Desta forma há um índice de impessoalidade extrapolando a individualidade, transformando sujeitos, lugares e instituições em construções provisórias dentro da dinâmica espaço-temporal.
Assim as cidades são registradas como personagens com características próprias, por exemplo, as capitais são retratadas como lugares caros cujo cotidiano passa pelas relações sociais dos nobres e funcionários públicos. Enquanto isso, o campo é retratado como uma vida bucólica e simples, de trabalho árduo. Esta relação entre o campo e a cidade serve como ponto de partida para discussões filosóficas e políticas que diagnosticam uma crise social e econômica.
O paralelo campo-cidade, na forma arquitetada por Tolstoi, destaca as relações econômicas políticas por trás das tramas individuais. Indo adiante, é possível através deste par destacar as linhas constitutivas dos processos de subjetivação que tornam cada personagem único. Esquadrinhando os diferentes aspectos de uma sociedade em mudança, nos aprofundamos na obra literária.
A Cidade e o Campo
Podemos dizer que dentro da hierarquia narrativa, Konstantin Lievi é o único personagem no mesmo patamar de Anna. Ainda que durante toda a narrativa apenas uma vez se encontrem pessoalmente, toda a construção da história é equilibrada pela simultaneidade das duas histórias opostamente complementares.
A conexão entre Anna e Lievi é a família Cherbátski, principalmente as Irmãs Dolly e Kitty. Dolly é casada com Oblonsky, irmão de Anna, e isto logo no começo da história é apresentado ao leitor. A primeira cena do livro é Oblonsky acordando em seu escritório, onde foi dormir após uma briga com a esposa que, através de bilhetes, descobriu o caso do marido com a governanta
Despertando após uma noite mal dormida, Oblonsky busca formas de apaziguar a esposa e salvar o casamento, e para tal, convoca a ajuda da irmã Anna. Por sua vez, Anna mora em Petersburgo, logo parte para Moscou no intuito de auxiliar o irmão, conversando com a cunhada, a quem tem legítima afeição. É nesta visita que Anna conhece Vronsky, que no momento corteja a jovem Kitty Cherbátski, irmã de Dolly. Este arranjo é um dos alicerces para a construção do livro, Anna e Vronsky logo se apaixonam, dando início aos dois anos narrados, o ápice da paixão e o descarrilhar da razão em direção ao estado psicótico que leva ao desperado fim de Anna.
Simultaneamente a esta linha narrativa, outra acontece, esta, protagonizada por Konstantin Lievi. Ao contrário da maior parte dos personagens que naturalmente circulam entre os círculos sociais das duas capitais (São Petersburgo e Moscou), Lievi se sente à vontade apenas nos cenários rurais do campo, sendo tomado por desconforto e inquietação no cotidiano das cidades grandes. No começo da narrativa Lievi está em Moscou, ainda que a contragosto, por um motivo específico, pedir em casamento Kitty Cherbátski.
Lievi é amigo de infância de Oblonsky, da mesma forma, cresceu ao redor da família Cherbátski. Quando o amigo casou com uma das irmãs, pareceu quase natural a Lievi que o destino lhe reservara a irmã Cherbátski mais nova. Entretanto, ainda que esta lhe fosse a história reservada pelo destino, naquele momento Kitty rejeita a proposta de Lievi, tendo em vista que espera neste mesmo dia receber o pedido de Vronsky. O desenrolar conhecemos, Anna e Vronsky se apaixonam, o pedido de casamento não se concretiza. Kitty adoce com a forte decepção amorosa e Lievi volta para o campo com o coração partido.
O desenvolver entre estas duas narrativas são as vias principais por onde a história segue. Enquanto Anna habita o opulento e caro cotidiano da alta sociedade, Lievi está preocupado com a gestão de sua fazenda, com o plantio, a colheita e todos os sutis detalhes técnicos e sociais presentes.
Enquanto Anna habita uma posição onírica, entre o bom sonho e um pesadelo, o personagem de Lievi é construído na dureza do trabalho e devaneios filosóficos de olhos abertos. Neste ponto é interessante o posfácio de Janet Malcolm destacando a atmosfera de sonho presente na narrativa, entre bailes, frufrus, recepções e as intermináveis conversas sempre cheias de decoro.
O paralelismo entre a cidade e o campo é marcado por oposições, passadas para o leitor através da experiência dos personagens, é através dos olhos dos personagens que o leitor vislumbra a tecitura social, política e financeira. Neste sentido é marcante a diferença entre o custo de vida entre o rural e urbano. O alto custo de viver na cidade é assunto constante. Para Lievi, um nobre fidalgo dono de terra, os gastos da cidade grande não fazem sentido. É notável uma cena, em uma de suas estadias em Moscou, Lievi a todo momento compara os gastos que considera supérfluos com os gastos do campo. Para ele é um tormento gastar 100 rublos para o uniforme dos empregados, enquanto esse mesmo valor é o ganho de duas temporadas de trabalho de um Mujique. O dinheiro na cidade possui um valor social completamente distinto daquele do campo.
A cidade inflada precisa do dinheiro circulando para manter seu modus operandi, valores financeiros completamente discrepantes em relação ao valor simbólico e social dos produtos e serviços. Ainda nesta mesma cena, Lievi após gastar 20 rublos com algo que considera desnecessário, pondera quantos quilos de aveia esse mesmo dinheiro pode comprar, e quanto tempo essa aveia pode alimentar um cavalo. Há um claro abismo entre o rural e o urbano, um abismo que separa a pobreza da maioria da população e a opulência de uma classe nobre.
Os produtos nas capitais são grandemente inflacionados em relação aos preços praticados nas áreas rurais. Os mesmos itens têm preços completamente diferentes dependendo de onde são vendidos. Entretanto, mesmo que o pão em Moscou seja caro, Lieve encontra problemas para vender o trigo por um preço que considera justo.
Em todos os proprietários rurais, dos grandes fidalgos aos pequenos senhores de terra, sobram reclamações sobre a situação do campo. As fazendas não são lucrativas, é caro cultivar a terra, ao mesmo tempo, o preço final do produto agrícola não aumenta. Os trabalhadores ganham pouco, para uma grande parte, recebem apenas o necessário para sobreviver, o dinheiro não permanece no campo, os insumos são vendidos a baixos preços para sustentar a cara opulência da alta sociedade.
O incômodo com a cidade e o esforço mental para entender sua própria posição subjetiva, levam Lievi a se dedicar a estudos filosóficos sobre política e trabalho. Vale lembrar que a narrativa acontece na Rússia em 1870, em um cenário ainda com características feudais, o que coloca o trabalhador rural russo, o mujique, em uma posição única. Lievi de uma forma empática entende esta posição, e seu esforço para colocá-la em termos filosóficos o leva ao estudo de diferentes correntes de pensamento, sem com nenhuma ficar satisfeito, para o pensamento de Lievi, é preciso tomar a primazia do humano, colocar o trabalhador como centro de qualquer discussão política e social.
Procurando adentrar essa questão evocamos uma cena como exemplo, em um das muitas conversas filosóficas e políticas com o irmão, o assunto é a construção das estradas de ferro, a facilidade de locomoção proporcionada pelos trens. Lievi é claro em sua posição, a forma como as estradas de ferro estão sendo construídas não apenas é supérflua, como prejudicial para o campo, as linhas de trem visam a ligação entre os centro urbanos, principalmente entre Moscou e São Petersburgo, estas rotas facilitam a circulação do Capital e da Especulação, feitas para o traslado de nobres e servidores públicos que ganham dinheiro sem de fato produzir algo. Enquanto isso, não há rotas que ligam o campo a cidade, que facilitem o escoamento da produção, que agilizem a circulação de insumos agrícolas.
Esta passagem é quase profética quando Lievi deixa claro que a valorização do dinheiro produzido sem trabalho é um dos motivos da crise social. As conversas e vivências são utilizadas com uma forma de mover o foco de luz, utilizando um nível micro social para expor as relações macro sociais, partindo do indivíduo se chega ao coletivo, reciprocamente, revelando o tecido macro social revelamos as linhas constitutivas da subjetividade. Através dos anseios e desejos de Lievi experimentamos um ponto de vista onde o trabalho rural é a real riqueza da nação, onde no fim das contas é o trabalhador rural o grande pilar de uma sociedade, entretanto, este aspecto é ignorado enquanto funcionários públicos ganham fortuna executando um trabalho que não passa de um ritual dentro do teatro capitalista burocrático.
A pobreza do trabalhador, a riqueza dos ociosos
Stefan Oblonsky é um personagem ímpar dentro da narrativa. Casado com Doly Cherbátski, pai de uma família de numerosos filhos, Oblonsky é um funcionário público. Seu caráter é único, dentro da densa trama, é dos poucos capazes de protagonizar momentos cômicos, ainda que seu caráter libertino o coloque como um anti heroi, é um destes personagens por quem é impossível não simpatizar. Sempre risonho e bem humorado, invariavelmente é recebido com felicidade e sorrisos, ocupa um cargo para o qual não tem qualquer qualificação, cargo este, que o texto não deixa claro de fato qual é a função exercida. Entre idas ao escritório e conversas na repartição, o trabalho de Oblonsky parece consistir em situações sociais, na maior parte das vezes regadas por muita bebida.
Mesmo com o bom salário de “Camareiro da Corte”, Oblonsky se afunda em dívidas, devido ao estilo libertino com que seus gastos são geridos, frente a estas questões financeiras decide procurar um novo cargo, decide se candidatar a uma vaga aberta na “comissão conjunta da agência de crédito mútuo e de balanço da estrada de ferro do sul e de instituições bancárias”. Este novo cargo passa a ser o objetivo dedicado com afinco. Oblonsky sabe que não tem as qualificações para o cargo, mas também sabe que as especificações são tão específicas que não existe alguém capaz de preenchê-la, o que torna o requisito básico do cargo a “honestidade”, ou seja, um tipo de alinhamento específico com o governo e as instituições sociais.
O cargo é ideal para Oblonsky, uma vez que não precisará deixar o cargo atual, e com esse acúmulo de funções o soldo anual irá aumentar grandemente. O alto salário é o único motivo guiando Oblonsky, em pensamentos procura justificar a utilidade real da nova posição, todavia se perde em sofismos e justificativas sem de fato chegar a relevância de um cargo tão bem remunerado. Em uma cena, quase no fim do livro, o sogro de Oblonsky diz:
“Ele acabou de receber um cargo de membro de uma comissão de não sei o que, não me lembro. Só que ele não faz nada na comissão… Ora Dolly, isso não é segredo! E com um salário de oito mil rublos. O senhor experimente perguntar a ele se o seu serviço é útil. Vai mostrar ao senhor que é a coisa mais necessária do mundo. E é um homem sincero, pois é impossível não acreditar na utilidade de oito mil rublos”
Essa fala corrobora a posição de outros personagens que observam nos altos salários, de cada vez mais funções inventadas, um dos sintomas de um governo doente, sem controle dos gastos públicos. O capital nacional é utilizado para sustentar uma classe abastada e aproveitadora, usando a bandeira patriótica sem ter qualquer relação com a maior parte da população.
Lievi não se conforma com esses gastos burocráticos sem qualquer relação com a realidade do trabalho. Para pensar este ponto, a questão da construção das estradas de ferro é interessante, uma metáfora concreta do fortalecimento da burocracia especulativa em detrimento a precarização do trabalho real. As capitais conectadas erguidas com luxo enquanto a pobreza do campo permanece isolada.
A expansão da malha ferroviária tomada como interesse estatal criou uma série de novos empregos, instituições e gastos. Para Lievi é completamente absurdo que um homem que intermediou as assinaturas legais para construção ganhe mais do que todos os trabalhadores que de fato construíram as estradas. A distância entre estas duas realidades parece intransponível. De um lado uma massa empregada com baixos salários, de outro, alguns poucos em comissões com altos salários.
Para Lievi a verdadeira riqueza da nação é o povo trabalhador, os milhões espalhados pelo território, na maior parte das vezes, sem relação ou conhecimento político. Entretanto, são os nobres e burocratas os guardiões da bandeira patriótica, na base do discurso justificando um estilo de vida custoso que depende da desvalorização do trabalho real. É incrível pensar que este retrato social possui mais de um século, as semelhanças são tão atuais que nos fazem entender como as instituições contemporâneas são arcaicas. Tanto no âmbito dos segmentos institucionais macro, quanto nas moralidades molecularmente impostas, a construção narrativa do romance é precisa em revelar a trama base das relações sociais que codificam a experiência de ser um indivíduo.
Polos Dinâmicos
Em Anna Karenina, Tolstói constroi um retrato da vida com todas as complexidades do cotidiano. A arquitetura da trama une os personagens, ao mesmo tempo em que cada indivíduo é esmiuçado revelando como em cada um habitam escolhas que são mais do que individuais. Anna, a dama da alta sociedade, envolvida em um caso extraconjugal, tratada como uma pária pela sociedade, tem por traz das aparências uma história construída pela submissão a um casamento arranjado com um marido que não ama. O caso de Anna, por mais individual que possa ser em seu desenrolar, é fruto das construções sociais que posicionam a mulher como um objeto a ser arranjado em um bom casamento. Um detalhe interessante, mais ou menos no meio da narrativa, Anna passa por uma situação de quase e morte, neste momento, Aleksei, o marido traído, perdoa a mulher, em um ato de benevolência decide lhe conceder o divorcio e a guarda do filho.
O divorcio e a guarda do filho são os dois maiores desejos de Anna desde o início do caso com Vronsky, entretanto, ela recusa no momento em que lhe são oferecidos. Anna foge, sem o divorcio abandona o filho. Em outro momento Anna retoma a questão do divorcio e da guarda, mas desta vez, um ano depois, Aleksei nega o pedido de Anna, o que corrobora com a crise existencial da personagem.
O que leva Anna a recusar o divorscio? Solução que neste momento representaria seu retorno para sociedade e uma espécie de redenção moral. Todavia isto para Anna é impossível, sente o peso das instituições religiosas e morais, linhas de construção subjetiva que são íntimas e ao mesmo tempo são significantes sociais. O nome do marido, o nome do amante, a mulher sem nome, em sua confusão mental Anna passa pelas peças do quebra cabeça sem conseguir encaixá-las. No íntimo sabe que não pertence mais à sociedade, que o retorno para os círculos sociais é uma fantasia a que tem que se submeter carregando o nome de um homem, seja do marido atual, ou do novo marido do casamento após divorscio.
A riqueza do romance está na multiplicidade que acontece na superfície. Não há profundidade no texto, no sentido que não há relações de mistério ou discursos escondidos, tudo se desenrola em uma relação de luz e sombra, sendo luz e sombra uma dinâmica que depende de onde está a fonte de luz.
As questões existenciais presentes em Konstantin Lievi são diferentes às de Anna, ainda assim complementares. Lievi, com o coração partido após a recusa de Kitty, se dedica a busca filosófica por um sentido para sua vida. Não entende a encenação cotidiana da qual seus pares sociais fazem parte, vê no estilo de vida das capitais uma vida supérflua e ociosa, sem qualquer sentido. Ao se casar com Kitty, esta impressão é acentuada, e o estilo de vida rural adquire uma beatitude não religiosa que no fim guia o personagem para uma tranquila felicidade.
A oposição complementar acontece do início ao fim do livro. Logo no começo a oposição entre a felicidade apaixonada de Anna e a decepção melancólica de Lievi. À medida que a felicidade de Ana se transforma em ciúme e solidão, diametralmente os sentimentos de Lievi passam para a alegre esperança da retomada das relações com Kitty, no fim a inversão é plena, e o desfecho é uma oposição completa. Não à toa, toda a última parte do livro é dedicado a Lievi e sua família, criando uma felicidade que em determinada iluminação aparece como concretização das aspirações sociais do casamento, todavia, ao mover a luz vemos na sombra que a origem da felicidade é uma revelação ética sobre a vida, em muito diferente daquela imposta pela religião e os costumes.
Linhas Históricas
Um dos aspectos marcantes desta obra literária é o realismo, às cenas e os personagens são construídos e lapidados por diferentes ângulos. As cenas e diálogos são descritos com riquezas de detalhes, tornando o leitor parte da cena. Levando em consideração o viés realista, é interessante abordar o contexto histórico sobre o qual o romance se desenrola.
Em 1870 o Império Russo era uma monarquia absolutista governada pelo czar Alexandre II. Assumindo o império em 1855, o czar continuou as políticas de modernização iniciadas por seu antecessor. Essa modernização englobava aspectos abrangentes, econômicos, políticos e sociais. Neste momento a nação russa passava por um processo de industrialização do campo, até então as bases da economia russa eram as grandes propriedades agrícolas feudais com pequenas produções. As inovações tecnológicas, como fábricas e estradas de ferro, chegavam do estrangeiro carregando também novos signos sociais. Essas mudanças ficam mais evidentes em São Petersburgo, tornada nova capital, uma cidade moderna e liberal.
Outro aspecto que é importante levar em consideração é o fim da servidão em 1861. Buscando deixar o formato medieval, a emancipação dos servos colocou um novo contexto social para a maioria da população, entretanto, não significou uma real mudança econômica. Todo esse contexto está presente nas linhas de Anna Kariênina, sendo alicerce para a construção dos paralelos dinâmicos por onde a narrativa perpassa. A questão do trabalhador russo é um dos pontos centrais dos questionamentos de Lievi, a diferença cultural entre Moscou e São Petersburgo é levantada a todo momento, as mudanças de costume e moralidade ligadas a questões religiosas e morais são fios sutis no discurso. Entre as relações duais, o par Anna e Lievi é o núcleo dinâmico da narrativa, extrapolando os indivíduos, revelando as linhas moleculares costurando o tecido social.
Costurando a Ficção com a Realidade
Buscando conectar ferramentas filosóficas a obra de Tolstoi, podemos pensar as conexões sociais e históricas entre os personagens através dos conceitos de macropolítica e micropolítica na forma como propostos por Deleuze e Guattari no capítulo Micropolítica e Segmentaridade, parte do livro Mil Platôs 3:
“uma macropolítica e uma micropolítica, que não consideram absolutamente da mesma forma as classes, os sexos, as pessoas, os sentimentos. Ou, antes, que há dois tipos de relações bem distintas: os relacionamentos intrínsecos de casais que põem em jogo conjuntos ou elementos bem determinados (as classes sociais, os homens e as mulheres, determinadas pessoas), e em seguida os relacionamentos menos localizáveis, sempre exteriores a eles mesmos, que concernem, antes, a fluxos e partículas que escapam dessas classes, desses sexos, dessas pessoas.”
A maestria do realismo de Tolstoi está em costurar estas políticas de tal forma que se tornam inseparáveis. O enredo dos personagens é um desenrolar de uma trama fictícia determinada por uma série de ações, ao mesmo tempo, o cenário político (interno e externo) é tão protagonista quanto Anna e Lievi.
Quando Oblonsky pleiteia o novo emprego, somos levados pelos pequenos favores que possibilitam a ascensão social, conversas que esmiúçam a estrutura política social. Quando Vronsky enfrenta o impasse entre mudar de cidade e seguir a carreira militar ou permanecer e continuar o caso com Anna, o leitor presencia a humanidade dos detalhes técnicos presentes na instituição política militar. Quando Anna é hostilizada na ópera, além da mágoa emergem as idiossincrasias morais da ordem do desejo.
Ao falar em níveis macros e micro políticos, é preciso deixar claro que não se trata de uma hierarquia, ou índice de importância. Uma política é tão real quanto a outra. A uma sustentação simultânea entre estas duas instâncias, ao discernir damos evidência a um fato: a política é feita por sujeitos. Ainda que nomenclaturas abrangentes como governo, estado e nação, por vezes sejam demasiado abstratas, sempre há uma linha molecular perpassando, micropolíticas dos agenciamentos, entre indivíduos e instituições.
Nenhuma escolha é plenamente individual, voltamos ao impasse de Anna em aceitar ou não o divorcio, por mais que a forma como a história é descrita nos leve pelos desejos e emoções da protagonista, o principal pilar do impasse é a posição social de Anna enquanto mulher. A repulsa que sente pelo marido, e em alguns momentos também em relação a Vronsky, é a externalização consciente de um desconforto inconsciente, um desconforto não elaborado que permanece como uma sensação de mágoa e impotência.
A realidade imediata é constituída por uma simultaneidade de linhas e discursos, a apreensão do agora ocorre através do olhar construído, mesmo os aspectos ordinariamente considerados como triviais ou naturais, carregam uma história e um peso significante. Os impasses da ordem macro, com limites rígidos e instituídos, as fissuras moleculares por onde escorre o desejo. Múltiplas realidades sobrepostas, aquilo que está na superfície de tudo que se passa na sombra.
Conclusão
Em meio ao complexo emaranhado de tramas e personagens, é interessante a escolha em nomear a obra de Anna Kariênina. Mais do que uma protagonista, Anna é o centro de gravidade orbitado pelos personagens que compõem o enredo. Anna sempre está presente em cena, da mesma maneira que os efeitos da gravidade são onipresentes. A construção da personagem acontece de maneira gradual, o caso com Vronsky é a situação inicial sobre a qual o leitor se aprofunda na construção de Anna. Uma dama da alta sociedade, esposa dedicada, mãe devota, características apresentadas à primeira luz. Um casamento arranjado com um marido mais velho, um relacionamento frio, um cotidiano penoso, a média que o foco luminoso se move aumenta em abrangência a visão do leitor.
À medida que, sendo uma mulher casada, se entrega à nova paixão, Anna é julgada por diferentes instituições sociais. Frente a religião e a moralidade, Anna assume o peso de seu desejo, decide arriscar uma nova vida e parte. Entretanto, por mais que afirme o que quer, sabe que jamais se verá livre do nome de um homem, o sobrenome Kariênina indica que Anna é de Aleksei Karenin. Quando tem a possibilidade do divorcio, percebe que na verdade precisará adotar outro sobrenome para viver nos círculos sociais e familiares, o nome do novo marido.
Um contrato amarra Anna, de cada lado um Aleksei. A sutileza de Tolstoi ao escrever os dois homens com o mesmo nome, tanto o marido quanto o amante. Encurralada por dois homens que no fim são o mesmo, são todos os homens, a moral, o estado. O caminho que leva a loucura passa pelas instituições sociais, o desejo ao construir o sujeito passa por segmentos, dos mais íntimos e familiares às instituições políticas e sociais. Da casa ao estado há uma arquitetura segmentarizada, esquadrinhando o sujeito, o espaço e o tempo.
Neste ensaio tomamos como ponto de partida o realismo literário na forma arquitetada por Tolstoi no romance Anna Karenina, destacando as relações sociais, econômicas e políticas por trás das tramas individuais. Desta maneira, entendemos o olhar do autor como diagnóstico de uma sociedade em mudança, possibilitando paralelos com nossa sociedade contemporânea. Passado mais de um século a trama de Anna Kariênina surpreende pela atualidade, a ficção explicita o tecido do real, revelando linhas molares e moleculares úteis para entender o nosso atual mundo presente.