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Junho de 2013 – Dez anos depois (Posfácio por Lucas Veiga)

Junho de 2013 – Dez anos depois (Posfácio por Lucas Veiga)

written by Emanuel Souza

25 Mar 202410 EDITIONS
1 TEZ

Junho de 2013 – Dez anos depois. Posfácio por Lucas Veiga

Como será o amanhã? Pergunta que pairava no ar e habitava cada um de nós que vivemos junho de 2013 na sua radicalidade. O modelo político em vigor tinha chegado e nos levado ao esgotamento. Por mais que não tivéssemos como responder à pergunta que abre este posfácio, certamente tínhamos certeza de que o estado de coisas não podia permanecer como era. O que até então vinha sendo experimentado como normalidade passou a ser vivido como intolerável. Já fazia dez anos que um partido de esquerda estava no poder e, por mais que avanços fundamentais tivessem se dado, havia algo do próprio funcionamento do Estado brasileiro que impedia que outros avanços também fundamentais pudessem se dar.

A fina camada que revestia o tecido social do país se rompeu e as ruas se encheram de corpos e de vozes que não aceitavam mais o presente como forma única de gerir a política, a economia, a mídia. O desejo pulsante em nós que, naquele momento, estávamos nas universidades com nossos vinte e poucos anos, era de derrubar tudo para que um novo modo de gestão da vida em coletividade pudesse se dar, em que os interesses do povo e não das grandes corporações fossem levados a cabo.

Mas quem é o povo? O que é isto que foi historicamente sendo nomeado de povo brasileiro? Num primeiro momento, as manifestações produziram um senso de comum, de comunga das inquietações e do desejo de transformação social. Estar nas ruas era sentir a força da multidão, a cumplicidade da solidariedade, a partilha do sonho de um novo amanhã. E essa mesma via que nos uniu, se bifurcou em direções variadas, rachando nosso senso de povo. Constatamos atônitos que o povo brasileiro não existe.

Pessoas de posições políticas nem um pouco progressistas também foram para as ruas a partir de um dado momento. A mídia hegemônica rapidamente rotulou os manifestantes de vândalos ao mesmo tempo em que catapultava a força histórica daqueles atos em direção a um ataque direto à Presidência da República. As eleições aconteceriam no ano seguinte e era de interesse dos grandes grupos econômicos que controlam este país que a direita voltasse ao poder e que os avanços até então conquistados pudessem retroceder. Mas para nós, progressistas que vivemos junho, havia o entendimento de que o buraco era mais embaixo, de que a questão não era contra uma liderança específica, mas contra o sistema político como um todo. A predominância narra tiva brasileira de fazer tudo virar uma novela com mocinhos e vilões, mascara a complexidade de nossa história e as engrenagens que possibilitam a repetição do mesmo, a contradição de avançar e permanecer no mesmo lugar simultaneamente.

“Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”, acanção de Belchior parece compor bem como trilha sonora da memória que trazemos de junho de 2013. O sonho de transmutação da realidade que carregávamos naquele período foi duramente golpeado três anos depois e vimos perplexos sair dos bueiros discursos fascistas. O grupo político que mais cresceu nestes últimos anos foi a extrema-direita, insuflada por um moralismo neopentecostal decidido a fazer um inferno na vida de todos e de qualquer um que não seguisse seu fundamentalismo. Evangelizar para dominar, nossa história como colônia se repetindo ou seguindo seu curso desde 1500.

A juventude apaixonada pela vida — que fez junho acontecer ao mesmo tempo em que saboreava com muita intensidade os grandiosos mistérios de existir e as múltiplas camadas que compõem a realidade do Universo — foi se apropriando das problemáticas de ser adulto ao mesmo tempo em que a extrema-direita chegava ao poder em 2018. Naquele ano, fomos novamente às ruas em massa, já mais perto dos nossos 30 anos de vida, alguns de nós levando seus filhos nos braços ou no ventre, e bradamos: “Ele não!”. Sendo que já não era mais a rua que estava em disputa, era o território das redes, capturada pela extrema-direita por meio de um esquema de produção e de distribuição em larga escala de fake news, em especial por meio de aplicativos de mensagens. Perdemos a eleição.

Os últimos quatro anos nos dava a sensação de estarmos vivendo num filme de terror, um cenário distópico em que miséria, desmatamento, perda de direitos e perseguição a grupos minoritários se amalgamavam em política de governo. Muitos de nós desenvolvemos quadros de ansiedade e de depressão neste período em que o horizonte de futuro havia sido suspenso. O país do futuro estava submerso na repetição de seu passado colonial e ditatorial. Que país é este? Amar e odiar o Brasil. Esta terra indígena, país construído sob o trabalho escravo de milhões de africanos, governado por mãos sujas de sangue. “Eu quero ver quando Zumbi chegar o que vai acontecer”. Como será o amanhã? A pergunta que abre é a mesma que fecha este posfácio. Passada as últimas eleições em que saímos vitoriosos e acompanhando de perto o desenrolar do derradeiro governo Lula, o horizonte de futuro novamente se desvela e a chama da transformação social volta a queimar. Pela primeira vez na história, há um Ministério dos povos originários. Pela primeira vez na história, há um Ministério da igualdade racial. Inegável conquista.

Estamos em 2023, sobrevivemos ao governo fascista e à pandemia da covid-19. Vimos de perto o apocalipse e, por sorte, não fomos arrebatados. Uma nova terra se anuncia e se agencia como possível, depois de anos de horror parece que podemos, finalmente, voltar a acreditar, a sonhar e a construir novas realidades. Uma outra geração chegou às universidades, muito mais diversa que a anterior graças à política de cotas. Outras epistemologias sendo reconhecidas e estudadas, cosmogonias indígenas e africanas compondo a produção de novos saberes, travestis sendo eleitas para o Congresso Nacional, detratores da democracia sendo punidos na letra da lei. Em paralelo, a bancada evangélica cresce, candidatos da extrema-direita são eleitos deputados e senadores, o Banco Central segue nas mãos de um bolsonarista. Contradições. O futuro do Brasil segue em disputa.

Nossa geração, agora imersa nas obrigações da vida adulta, entre trabalhar e pagar boletos, ainda encontra brechas para respirar o ar puro e indomável do plano de forças da vida. Olhamos para 2013 com certa nostalgia, menos pelo cenário político da ocasião e mais pelas descobertas da juventude e seu desejo de tacar fogo no mundo para criar outro.

Leio este livro como uma homenagem e um convite para cada um de nós mantermos a conexão com o revolucionário que nos habita.

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