Capítulo 01 - Sábado
written by Emanuel Souza
Capítulo 01 - Sábado
O manto escuro da noite ganha tons acinzentados à medida que os primeiros raios do dia despontam no horizonte levando consigo os resquícios de sonhos intranquilos. O céu sem nuvens desliza quantas vindos do espaço, derramando sobre a cidade as debutantes luzes do dia. Um fio de luz mergulha entre as cortinas entreabertas de um quarto no quinto andar, a poucos metros da praia de Icaraí, em Niterói. O fio de luz sutil esgueira pelo quarto, encontrando as pálpebras do corpo que dorme. Estou dormindo, prestes a acordar. A penumbra da madrugada dissipa o ambiente bagunçado. O quarto não é meu, estou temporariamente, enquanto me organizo e consigo um novo lugar para morar. O quarto pertence a Dean, que divide o apartamento com outros dois amigos, Castelo e Simão. Dean viaja muito, neste momento está em Goiás, programado para estar de volta na quarta. Hoje é sábado.
O fio de luz solitário ganha companhia, agora é suficiente para acordar o corpo que deseja permanecer inerte. Deixa a cama, alcançada a realidade caminha até o banheiro, Preciso de água, hidratar as moléculas ressecadas pelo álcool, um leve incômodo de ressaca no estômago. A casa está em completo silêncio, mesmo o trânsito da rua, normalmente intenso e barulhento, está tranquilo. Penso sobre o horário, sobre como deve ser cedo. Não procuro as horas, deixo o banheiro e caminho até o terraço. O apartamento é um achado, em meio às fortunas da especulação imobiliária habitamos uma cobertura em um dos bairros mais caros da cidade. Um antigo prédio de cinco andares com um problema moderno, sem elevador. O que torna o quinto andar com seu interminável lance de escadas um imóvel pouco atrativo. O apartamento divide andar com uma grande área aberta de uso comum, entretanto, subutilizada pelos outros inquilinos do edifício, o que a torna praticamente uma extensão da casa, nossa sala de estar a céu aberto, escritório beat estampado de fumaça e estrelas. Estico uma cadeira de praia, deito reptilianamente deixando os poros absorverem a aurora.
Quando o calor do sol muda de conforto para incômodo a pele pede abrigo ao interior. O apartamento ainda está silencioso, a rua já está agitada e barulhenta. Ligo o computador e coloco Hendrix para tocar enquanto aperto um baseado. Deixo a fumaça entrar em meu corpo, da mesma forma a música, vibrações inaladas e acordes. Ando pelo aposento, abro a janela deixando banhar claridade. O fluxo canábico toma o corpo, deixando os membros leves e as extremidades esfumaçadas, o primal prazer de existir, simples conexão fluida com o agora e o mundo. Aproveitando a onda o corpo se movimenta pelas limitações do ambiente, deslizando em cadência, sentindo a música, magia e distorções. Com um mergulho me fuso com o colchão, deixando a leve brisa em comando.
O braço esticado encontra o livro na cabeceira, é o terceiro da série O Guia do Mochileiro das Galáxias, páginas de viagem, sátira e profecia. Os absurdos da ficção são paralelos à realidade. Vivemos o início de um novo mundo, o crepúsculo analógico, o eclodir do monstro digital crescendo faminto, devorando todos os aspectos da vida, do cotidiano, da subjetividade, anunciando o início de uma nova era sem precedentes. Penso como ficaria surpreso Winston vendo todos carregarem sua própria teletela, controle e liberdade na linha tênue das virtualidades e aplicativos, a concretização de uma subjetividade externa. É preciso ter cuidado. Buscar produções e usos possíveis. As novas tecnologias de informação têm sido condições de possibilidade para movimentos como a Primavera Árabe, os Indignados, o Occupy em Nova York. Fenômenos de eclosão e contágio, o alvorecer dos anos Dez, derrubando ditaduras na Tunísia, Egito, Iêmen, tomando dimensão de movimento global, unindo diferentes pautas e lutas em um tipo de consciência empática mútua, nos subúrbios da Grécia e nas praças da Espanha, um grande Não ao sistema e sua engrenagem opressora, vozes adormecidas acordando do torpor de um pesadelo embelezado em consumo. A revolução não será televisionada, as revoluções serão compartilhadas. Em suas multiplicidades transmitidas ao mundo, informação na palma da mão em um deslizar de tela. No Brasil, algo também está acontecendo, agenciamentos online em movimentação fora das grandes mídias. Rio de Janeiro, São Paulo, Natal, Belo Horizonte, Goiânia, movimentos se conectam, uma das principais pautas é o transporte público, a precariedade do sistema e os altos preços, a liberdade de ir e vir, o deslocamento de forma irrestrita. Organizações coletivas e trocas de informações, movimentos políticos e sociais, o passe livre, a precariedade do trabalho dos professores, o descaso violento com a população negra. A violência policial, neste momento apontada para os manifestantes na rua, no cotidiano apontada para uma geografia particular, tornando partes da cidade zonas de conflito, Onde está Amarildo, a pergunta ecoa e começa a ganhar relevo, aderindo ao contorno do movimento das ruas, adicionando outra camada à revolta, Aqui jaz a democracia, diz a placa de entrada do planalto, onde as manifestações têm sido transmitidas ao vivo em salões de bilhar. Considerações sobre a vida e a terra, isolado em um outro planeta Arthur ensina a voar, basta errar o chão e deixar se flutuar. Quero sair pela janela sem destino, vaguear entre as nuvens, aprender a língua dos pássaros e falar de amor com as borboletas. Encontrar um outro mundo que não seja governado por tiranos e não idolatre o ego e o ódio. Fecho os olhos, abandono livro e pensamentos, deixo a alma cansada descer a correnteza do Lethe enquanto o corpo sossega.
Olhos abertos, estômago roncando. Na tela do celular entre notificações e mensagens os números a hora indicam. O corpo e a mente estão perto da homeostase, os efeitos da ressaca arrefecendo, Agora precisamos de calorias, dizem os órgãos famintos. Estou pronto para sair, encontrar João Batista para almoçar. Escolhido para a refeição O Galeto, um restaurante no centro de Niterói, tem o estilo carioca apelidado de bunda de fora, devido ao balcão alto onde a comida é servida, fazendo com que, ao se inclinar para comer, o cóccix fique à mostra. Jeito de restaurante e ar de boteco.
Caminhante urbano no mapa ensolarado, acabo de virar a esquina, agora já é possível ver o lugar, na entrada reconheço a figura encostada na parede mexendo no celular. Corpo esguio, pele negra ostentando o cabelo afro volumoso e o semblante profundo, cílios pesados que molduram olhos carregados com a chama da alma turbulenta. Saúdo João Batista na estreiteza das coisas familiares, da rotina dos dias e suas surpresas bem vindas. Adentramos o restaurante, o lugar está cheio, encontramos um espaço no balcão e pedimos chopes e pão de alho enquanto olhamos o cardápio. João Batista é um dos membros do grande fórum sobre a vida e o universo, nossos encontros sempre divagam e vergem sobre nossas tentativas de entender este mundo e nossos desejos de criar outros. Estamos em ano eleitoral, em outubro, mais uma vez, a nação irá às urnas, presidente, governadores, deputados serão escolhidos para os próximos mandatos. Atualmente Dilma Rousseff é a presidenta, irá concorrer à reeleição em um cenário onde a polaridade entre direita e esquerda escalona, e é este assunto que no momento estamos discutindo, É complicado chamar o governo da Dilma de esquerda, de um ponto de vista econômico, os governos do PT têm sido parceiros das grandes empresas, vide a política voltada para as grandes campeãs nacionais, Não discordo, mas é inquestionável como houve ascensão de uma grande parcela da população, até então esquecida, Não é à toa que o Nordeste ama o PT, Com certeza será de grande ajuda para a reeleição de Dilma, o que torna essa população petista é o que representa a esquerda. João Batista fala com o sorriso da certeza, o tom proselitista carrega algo de esperança. Entretanto, apenas consigo ver o cenário de uma batalha perdida, os ganhadores precisam vender a alma para manter o poder, ainda assim, ainda que seja por redução de danos, a conjuntura desfavorável torna o Partido dos Trabalhadores a alternativa viável. No fundo a sensação de que não importam os eleitos, é pouco promissor o futuro. Faremos o que precisa ser feito. Nas pupilas de João Batista descrença e esperança são caminhos do mundo, em meio ao apocalipse desfrutamos o sabor da comida e as graças da boa companhia. Sorrindo digo, Assim vai acabar me convencendo a votar nela, Deixa disso, já está convencido, a guerreira conquistou nossos corações. Rimos e brindamos.
Deixamos o restaurante em direção às barcas, rumo ao Rio, iremos para Cinelândia, onde está a concentração para o protesto dos professores. É um momento de ebulição, é possível sentir o aumento da pressão à medida que o movimento nas ruas aumenta. Múltiplas pautas estão em questão, os movimentos em torno das tarifas de transporte público, as más condições dos serviços públicos e os gastos exorbitantes com megaeventos esportivos, assim como projetos absurdos no Congresso Nacional, como o projeto de cura gay, a PEC trinta e sete e a PEC trinta e três. Envolvendo há um sentimento coletivo contra a corrupção, principalmente contra a impunidade dos atores políticos. O caminho para as barcas está movimentado, é nítido que diferentes parcelas da população aos poucos têm aderido aos protestos. Grupos que inicialmente não se identificavam com as questões das manifestações começam a comparecer às ruas levando suas próprias indignações.
Nas roletas da estação das barcas grupos de Black Blocs mascarados incentivam as pessoas a pularem as catracas. O número de Black Blocs também aumenta, blocos anônimos em ação direta, prontos para o enfrentamento, assumindo a linha de frente contra a truculência policial, neste momento dois grupos, um de cada lado das roletas, formam dois blocos sólidos. Distante alguns metros os guardas da estação estão quietos enquanto a massa de passageiros passa por cima das roletas, a maior parte das pessoas está entrando sem pagar, os seguranças parecem ter sido instruídos a nada fazer, visivelmente incomodados, apenas observam a massa que toma as barcas. Um bloco sólido, anônimo, ultrapassando a barreira da passagem, tomando o espaço coletivo, é desejo o ato de desobediência civil.
No outro lado da baía, no centro da cidade do Rio de Janeiro, andamos até a Cinelândia, onde diferentes movimentos estão reunidos. O movimento de ocupação continua, inspirado e conectado com as ocupações que têm se moldado desde dois mil e onze. Um círculo, algumas dezenas formando os pontos da circunferência, outros aglomerados ao redor, buscando espaço para escutar as falas. Neste momento está acontecendo uma assembleia, nos aproximamos, os ânimos estão exaltados. Muito da atual indignação gira em torno da inépcia do Estado e da falácia da democracia representativa, o que cria distanciamento com o programa partidário, ainda que movimentos de filiação partidária e sindical tenham pautas contundentes e compartilhem aspectos que interseccionam diferentes lutas e movimentos. O jovem com camisa vermelha e broche do Partido Socialismo e Liberdade acaba a fala, sob aplausos e vaias. A assembleia funciona por inscrição, qualquer um pode falar, basta inscrever o nome na fila e aguardar. Outro jovem assume a fala, não se dirige ao centro do círculo, permanece onde está, tem olhos pesados e semblante fechado, fala diretamente, sem retórica, o olhar fixo naqueles que defendem os partidos, Vocês não nos representam, vocês não me representam, se estou aqui hoje é pra dizer Não pra gente que nem vocês. Como febre o coletivo eclode em ovação, contrários e a favor. Há claras diferenças entre as pautas, ainda que haja concentração em torno de objetivos comuns, grande parte da juventude está cansada das soluções e propostas oferecidas pelos partidos, o jogo político de burocracia e marketing. João Batista está me puxando, aponta para frente, onde está um grupo de nossos amigos.
No território liso da praça, unidades múltiplas dividem espaço, os professores estão presentes. Neste momento a greve da categoria continua, no carro de som uma mulher está com a fala, tem a voz poderosa e a pele morena inflamada, fala sobre a precariedade da estrutura das escolas e dos baixíssimos salários dos professores. É vergonhoso que aqueles que instruem a nação sejam tratados com tamanho desrespeito. A precariedade da educação em paralelo com gastos exorbitantes com os megaeventos esportivos, na lógica do Estado, mais vale um estádio para duas partidas que dez escolas. Farra com dinheiro público e desleixo com a população. As reivindicações dos docentes são as reivindicações de uma nação que quer mudar.
O ato deixa a Cinelândia, toma o centro da cidade, rumando para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Estou com João Batista, Cassandra, Castelo e Tricia. Seguimos pelo meio da multidão, tomando as ruas em presença e grito, o ato segue um carro com grandes caixas de som, cartazes e palavras de ordem. Na nossa frente, algumas pessoas estão voltando e os carros de som estão parados. Olhamos uns para os outros e para frente tentando entender o motivo da parada repentina. No carro de som a voz de um homem pede calma, é seguida pelo barulho de duas bombas.
Tudo acontece rápido, em questão de segundos fumaça emana por todos os lados, barulhos de tiro, bombas explodindo, gritaria, pessoas correndo em todas as direções sem saber exatamente para onde ir, o caos parece nos cercar e não há para onde ir. Estou correndo em meio à fumaça, buscando um ponto de respiro, olhos ardendo, garganta queimando, tosse. A distância dissipa, já é possível respirar, sento no chão, um cara se aproxima, está com uma câmera no capacete e um colete amarelo, Toma um pouco de vinagre, ele diz me oferecendo uma garrafa. Derramo um pouco na camisa e coloco sobre o rosto, a sensação é ótima, as vias aéreas sendo recuperadas. Ele é cinegrafista da Mídia Ninja, transmitindo ao vivo o movimento das ruas. A Mídia Ninja mostra o que a grande mídia não mostra, basta ligar a tela para ter acesso ao conteúdo e transmissões. Pergunto se sabe como a confusão começou, o cinegrafista responde, Não vi o início, estava mais atrás, é difícil dizer o que inicia, a polícia agora atira por protocolo, e os Black Bloc têm vindo pra guerra, tá ficando feio.
Ao fundo o barulho de bombas e gritos aumenta, está vindo na nossa direção, o cinegrafista levanta, coloca máscara e óculos, liga a câmera e some na direção do alarido de tiros. Tomo o caminho oposto. Procuro uma rua paralela, uma rota de fuga para toda a confusão, procuro na correria algum rosto conhecido, nada encontro. Um Bloc invade uma agência bancária, quebra vidros e caixas eletrônicos, a polícia imediatamente aparece, gás, tiros, mais uma vez estou no meio do caos. Bombas chovendo, uma vem em minha direção, chuto de volta, mais bombas, mais tiros, dois manifestantes estão colocando fogo em latas de lixo fechando a rua, algo alto explode, um zunido forte e agudo arranha o tímpano, estou tossindo freneticamente, não consigo enxergar no meio da neblina de gás de pimenta, tento me afastar, encontro de frente um grupo de policiais, levanto as mãos enquanto corro, eles estão atirando na direção de um grupo jogando manequins no fogo ardendo no meio da rua, na neblina é impossível mirar, atiram ininterruptamente, mais gás, a tosse continua. Consigo atravessar a rua, estou fora da zona de tiro, ainda sinto os efeitos do gás, do meu lado para uma garota com uma echarpe encharcada de vinagre, ela está dizendo alguma coisa, não entendo, meu ouvido está zumbindo e o som oco dos tiros, sirenes, gritos, ela molha a ponta da minha camisa com vinagre, mergulho meu rosto no tecido molhado, o alívio, os olhos param de arder e é mais fácil respirar, um cinegrafista com uma câmera na cabeça surge de supetão, gesticula algo, levantamos, correndo, procurando ar. A truculência policial tem sido marca dos últimos protestos. A maior parte do movimento está dispersa, o último carro de som da central sindical pede calma sem ser ouvido. As motos circulam em bando, um policial dirigindo e outro em pé na garupa com uma escopeta de balas de borracha, prontos para dispersar o menor indício de confusão.
Estou andando pela Avenida Rio Branco em direção à estação central do Brasil. Poucos veículos circulam, maioria é policial. Por mensagem combino de encontrar João Batista. Acabamos partindo para lados opostos. Combinado o ponto de encontro, rumo pelas ruas centrais, parte das lojas e bancos está fechada com proteções de madeira, vidro quebrado, manequins espalhados pelo asfalto, alarme de carro, vitrines despedaçadas, poucas pessoas circulam, não há grupos, apenas passos apressados, sensação hostil.
Encontro João Batista e Cassandra em um bar na Gomes Freire, estão do lado de dentro, tomando cerveja encostados no balcão. De onde estão é possível ver a rua, o bolsão de normalidade que pleiteia retorno, a movimentação dos bares no início do sábado à noite, um grupo de adolescentes peregrinos católicos passa cantando louvores com bandeiras da Jornada Mundial da Juventude, um motorhome encosta do outro lado da rua e uma dúzia de argentinos desce em camisas de futebol e copos de fernet, corpos produzidos rumam para a Lapa, em algum bar está tocando funk, cheiro de perfume e creme, a beleza das pernas em short, brisa de maresia e marola, uma viatura para a poucos metros, descem três policiais, com fuzis pendurados e aparatados, um deles vai até uma lanchonete e volta com coxinhas e refrigerante que o trio come encostado na viatura, uma fanfarra passa tocando marchinhas políticas, Fora Cabral, mesas na calçada, cerveja gelada, saudações fraternais que parecem briga, ônibus acelerado, e tudo que no caos da cidade convive, no Rio de Janeiro hoje pulsa o centro do mundo.